Violações de Direitos Humanos e políticas econômicas: a funcionalidade da violência repressiva para a ditadura militar

Por Aton Fon Filho*

Na imediata sequência do golpe militar de abril de 1964, a gorilada tratou de implementar mudanças econômicas que se casavam com a repressão às organizações dos trabalhadores para fragilizar ainda mais suas lutas e, fragilizando-as, gerar segurança e maiores lucros tanto para o capital local como para atração de investimentos externos, em especial estadunidenses.

A proibição de existência do Comando Geral dos Trabalhadores, do Pacto de Unidade e Ação, das Ligas Camponesas, do MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terra e outros mais, a intervenção em centenas de sindicatos de trabalhadores na cidade e no campo, a perseguição, prisão e mesmo assassinato e desaparição de lideranças operárias e camponesas obrigaram-nos a uma debandada para a clandestinidade ou o exílio, com o que as próprias articulações e lutas foram postas em compasso de espera.

Aproveitando esse momento de desconcerto, foram adotadas medidas que fortaleceram a exploração do trabalho e debilitaram os direitos preexistentes, como a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para substituir o instituto da estabilidade do emprego e as políticas de arrocho salarial. Essas medidas e sua articulação com aquelas de caráter mais repressivo deixam muitas vezes sem sentido aparente a violência do novo regime, mas foram funcionais para atrair fortes investimentos externos que vieram mais adiante, em especial a partir de 1968 e até 1973, a tornar possível o chamado Milagre Econômico Brasileiro, período de forte crescimento econômico, caracterizado por elevados índices de expansão do Produto Interno Bruto.

Essa mesma conexão entre políticas repressivas e econômicas que estiveram no objetivo, na origem e na fase inicial da ditadura militar, veio mais tarde a desempenhar importante papel naquilo que tocou e quando os milicos decidiram-se por abandonar o primeiro plano da cena política.

Em 1973 teve lugar um episódio da guerra entre Israel e os países árabes conhecido como a Guerra do Yom Kippur. Em resposta ao apoio dado pelos Estados Unidos e a Europa aos sionistas, os países árabes organizados na OPEP decidiram fechar os poços de petróleo, aumentando o preço do óleo em mais de 400%. O aumento desenfreado do preço do barril de petróleo, de 3 para 12 dólares, obrigou a um enxugamento dos recursos empregados pelos países mais ricos nos países mais pobres, entre estes o Brasil.

Era presidente da Petrobrás naquele então o General Ernesto Geisel, que veio a ser indicado pelo então Presidente, Emilio Garrastazu Médici para substituí-lo no mandato que se iniciaria em março de 1974. Geisel teve elementos melhores do qualquer outro para perceber que aquela situação determinava o fim dos anos do chamado Milagre Econômico Brasileiro e o avizinhamento de grave crise econômica que repercutiria inevitavelmente em crises social e política conduzindo à crise de poder da ditadura militar.

Como resultado desse entendimento, Geisel estabeleceu a necessidade de um processo de retirada dos militares do pódio político no que ele intitulou um processo de abertura lento, gradual e seguro, valendo-se dos elementos de repressão ainda disponíveis para limpar o terreno e evitar que a situação degenerasse para uma condição explosiva.

Elemento central desse processo era o extermínio da militância antiditatorial, de modo a impedir que a combinação daquelas três crises resultasse em explosões de massas.

É nesse contexto que se dá a conversa reproduzida por Elio Gaspari no terceiro volume de sua obra As Ilusões Armadas – A ditadura derrotada, entre os generais Ernesto Geisel e Dale Coutinho, por aquele escolhido para assumir o Ministério do Exército, em que este, indagado por Geisel sobre o estado da luta contra a “subversão”, replica que as coisas estavam melhores:

“Ah,o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar”.

Ao que Geisel intervém: “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

Essa frase é o resumo da ordem para que matassem os militantes de esquerda, inclusive os do PCB, que não foram à luta armada, e desaparecessem com os corpos, numa ação preparatória para aquilo que o Geisel chamou de “abertura lenta, gradual e segura”.

Geisel tinha a consciência da reprovabilidade dos assassinatos que estavam sendo cometidos pelos organismos de repressão política, os chamados porões, o que externou na frase de “esse troço de matar é uma barbaridade”.

Apesar desse reconhecimento, porém, ele assumiu como política para si próprio e para seu governo a execução dos militantes que fossem presos: “É uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
Sendo, portanto, uma barbaridade que tinha que ser, tinha que ser escondida. E essa política de extermínio que ao ser posta em prática anteriormente vinha justificada como resultado de enfrentamentos ou tentativas de fugas, passa a ser simplesmente oculta, negada, resultando no surgimento da figura dos “presos desaparecidos”.

A figura dos presos desaparecidos, porém, surge a braços com aquelas de familiares de presos desaparecidos, cuja existência põe relevo a uma nova crise não vislumbrado nos planejamentos da “abertura lenta, gradual e segura”, a crise dos direitos humanos, que vai ganhando dimensão até se tornar ponto de atrito nas relações com a igreja católica e com o governo do presidente Jimmy Carter, dos Estados Unidos.

Essa questão dos direitos humanos atuou para, somada às crises econômica, política e social, reduzir o espaço de atuação dos militares emboram não impedindo que Geisel, primeiro, e Figueiredo, depois, concluissem o projeto de retirada ordeira dos militares para atuarem desde então atrás das cortinas.

Lamentavelmente, é essa ligação dos militares com as violações dos direitos humanos – que Geisel tentou mas não logrou ocultar – que Lula tenta agora impedir ao buscar barrar as lembranças da ditadura, das pessoas torturadas, assassinadas e desaparecidas.

*Aton Fon Filho, ex-militante da ALN e, atualmente, militante da Consulta Popular

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