Se há um ensinamento que pode ser extraído da história das sociedades modernas e contemporâneas, é que a luta dos trabalhadores proletários por sua emancipação e pela construção de uma sociedade alternativa à sociedade capitalista será mais longa e mais difícil do que imaginaram os primeiros socialistas e comunistas. É inevitável, portanto, que essa luta prolongada se divida em etapas estratégicas e em subetapas táticas, com sistemas distintos de objetivos e de alianças de acordo com o estágio e as particularidades do desenvolvimento capitalista ou da construção socialista no mundo e em cada país.
É o que mostra a trajetória do movimento proletário e socialista. Marx e Engels, atuando nos primeiros países capitalistas, destacaram a importância da participação ativa do proletariado nas revoluções democráticas como preparação necessária para as revoluções socialistas, que eles acreditavam que fossem iminentes. Após as experiências malogradas das revoluções européias de 1848 e da Comuna de Paris em 1871, reconheceram que a passagem da democracia para o socialismo seria mais demorada e mais difícil do que haviam imaginado. E formularam, mesmo em relação às revoluções proletárias em países capitalistas desenvolvidos, a distinção hoje consagrada entre o socialismo como forma transitória e o comunismo como forma acabada da nova sociedade.
Lênin, batalhando já na fase capitalista-imperialista e num país imperialista atrasado, qualificado por ele como feudal-militar, distinguiu, das revoluções democráticas de tipo velho, dirigidas pela burguesia, as revoluções democráticas de tipo novo, impulsionadas e dirigidas pelo proletariado e baseadas na aliança operário-camponesa, como preparação necessária para as revoluções socialistas na nova época histórica e nos países capitalistas menos desenvolvidos.
Mao Zedong, combatendo num antigo e milenar império, subjugado pelas novas potências capitalistas colonizadoras e imperialistas e por elas convertido num país semicolonial e semifeudal, salientou o caráter ainda mais complexo e demorado das novas revoluções democráticas, adicionando o segmento nacionalista da burguesia aos aliados do proletariado nos países coloniais e dependentes.
Vitoriosa a revolução antiimperialista, antilatifundiária e popular na China, e implantado o sistema básico do socialismo, os comunistas chineses passaram a defender, após a derrota da chamada Revolução Cultural e das tentativas de acelerar precipitadamente o ritmo das transformações socialistas, um estágio inicial na construção da nova sociedade, durante o qual as formas socialistas de economia e de sociedade precisariam combinar-se com a pequena produção mercantil e o pequeno comércio privado no campo e nas cidades, e até mesmo com formas capitalistas, como meios de acelerar a expansão material e cultural, o desenvolvimento das forças produtivas e a modernização da indústria, da agricultura, da ciência e tecnologia e da defesa do país, numa correlação internacional de forças desfavorável e numa fase de propagação mundial das novas tecnologias da informática, da comunicação à distância e da engenharia genética.
Pode-se questionar se não houve erros no conteúdo detalhado dessas etapas estratégicas e subetapas táticas, ou em seus prazos de duração, ou se elas corresponderam efetivamente à realidade do capitalismo e do socialismo no mundo e em cada país, ou ainda se a combinação entre as tarefas nacionais de cada país e o apoio à luta revolucionária e independente nos demais foi adequada. Mas não parece justificável que se negue, em princípio, o desdobramento da luta dos trabalhadores proletários e de seus representantes políticos e culturais em etapas estratégicas e subetapas táticas, como se o caminho para alcançar uma sociedade comunista internacionalizada pudesse ser retilíneo e rápido, sem a necessidade de formulação de objetivos parciais e de sistemas transitórios de alianças.
É esse questionamento de princípio, no entanto, que parece estar implícito em certa noção simplificada e pejorativa de etapismo que, nascida nas tradições anarquista e trotskista, se tem difundido nos últimos anos. Argumenta-se como se a meta histórica de uma sociedade comunista mundial pudesse ser colocada como objetivo imediato e generalizado da luta dos trabalhadores proletários, ou pelo menos como se a passagem de uma fase a outra dessa luta dependesse apenas da vontade política dos trabalhadores proletários e de suas vanguardas políticas e culturais, e não do amadurecimento difícil de condições econômicas, sociais, políticas e culturais no mundo e em cada país.
No Brasil, por exemplo, até meados dos anos 1970, a maioria das correntes marxistas defendia equivocadamente uma estratégia de revolução em duas etapas, a primeira nacional e democrática, a segunda socialista. Havia, inclusive, setores que preconizavam a necessidade de uma revolução antiimperialista e democrática sob hegemonia da burguesia nacional, antes que uma revolução proletária e socialista se tornasse viável. O erro essencial dos que assim pensavam não decorria da idéia de duas etapas revolucionárias, idéia que até hoje pode ser correta em outros países, com outras características e em outro estágio de desenvolvimento. O erro essencial é que, na base dessa concepção de duas etapas estratégicas na luta revolucionária dos trabalhadores proletários brasileiros e de seus aliados, se encontrava a avaliação equivocada de que o Brasil era uma sociedade semicolonial e semifeudal.
Tratava-se de uma avaliação triplamente errada. Primeiro, porque nunca houve no Brasil um sistema feudal, que se encontrasse em transição para o capitalismo, ainda por cima em meados dos anos 1970. Segundo, porque a real transição iniciada na história brasileira, das décadas finais do século XIX à primeira metade do século XX, foi a do escravismo colonial ao capitalismo dependente. E terceiro, porque essa transição já se havia completado na base econômico-social em meados dos anos 1950 e na superestrutura político-cultural em meados dos anos 1960, com a consolidação da hegemonia da grande burguesia. Essa transição se processou de uma forma burocrático-reacionária, autoritária, por cima, e não de uma forma democrático-revolucionária, mas o Brasil já era um país capitalista, ainda que subsistissem relações econômicas e sociais não-capitalistas subalternamente.
Concluídas no fundamental, em meados dos anos 1960, as transformações burguesas de nossa sociedade, a revolução que passara à agenda histórica era inquestionavelmente a socialista. Isso não significava, porém, que a revolução socialista se houvesse colocado na ordem do dia, ainda mais numa conjuntura em que as forças operárias, populares e antiimperialistas tinham acabado de sofrer uma derrota profunda e um regime ditatorial tecnocrático-militar se fortalecia no país. Cada etapa estratégica pode subdividir-se em diferentes subetapas táticas, até mesmo por erros cometidos pelas forças revolucionárias. Naquele momento, no Brasil, a luta comum pelo fim da ditadura militar se sobrepunha aos demais objetivos.
Por esses motivos, é equivocada a crítica que costuma ser feita ao etapismo, como se o desdobramento da luta proletária em etapas estratégicas e subetapas táticas seja errado em si mesmo, ou como se a passagem de uma etapa ou subetapa a outra possa ser rápida, independentemente das condições históricas concretas. Essa crítica simplificada prejudica a formulação tanto de uma estratégia correta, quanto de táticas adequadas para as diferentes conjunturas que os trabalhadores proletários e seus aliados ainda terão de percorrer em sua longa e árdua jornada anticapitalista, em busca de uma sociedade indissociavelmente democrática e socialista.
No Brasil atual, por exemplo, a frente tática não pode ser apenas proletária, nem mesmo somente proletária e semiproletária. A plataforma de luta dessa frente tática não pode ser antiimperialista e anticapitalista, afastando forças intermediárias, como as do campesinato, da pequena burguesia rural e urbana e, mesmo, de pequenos e médios empresários capitalistas, sem falar em movimentos democráticos amplos, não socialistas, como os da juventude estudantil, das mulheres, dos negros, dos índios ou de minorias discriminadas por suas opiniões religiosas ou por suas orientações sexuais.
Para que as forças proletárias e socialistas não se isolem, as condições objetivas e subjetivas atuais indicam a necessidade de uma frente tática antiimperialista e antimonopolista, voltada contra a grande burguesia transnacional e nacional, inclusive contra seu setor agrário, como o sistema de objetivos e alianças que pode viabilizar uma transformação política fundamental na sociedade capitalista brasileira e o início da construção de uma sociedade brasileira socialista, com a combinação durante algum tempo de setores socialistas predominantes com setores não-socialistas subordinados na política, na economia e na cultura.
*Duarte Pereira foi dirigente da Ação Popular, vice-presidente da UNE, jornalista destacado por seus textos críticos e rigorosos.
**Artigo escrito em 07/10/2011, originalmente publicado no Correio da Cidadania
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