A Rússia bolchevique foi o primeiro país do mundo a legalizar e tornar gratuito o aborto. Isso foi feito através do Decreto dos Comissariados do Povo para a Saúde e Justiça Sobre a proteção da saúde das mulheres, publicado em 8 de novembro de 1920.
Conheça, na íntegra, esse Decreto:
Ao longo das últimas décadas, tanto no Ocidente quanto entre nós, o número de mulheres que recorrem à interrupção da gravidez vem aumentando.
Por meio de suas legislações, todos os países, em conjunto, estão lutando contra esse mal (zlom) e punindo tanto a mulher que decidiu pelo aborto quanto o médico que o realizou.
Sem trazer resultados positivos, esse método de luta encerrou essa operação [o aborto] na clandestinidade e tornou essa mulher vítima de negociantes egoístas, abortistas e frequentemente ignorantes, que, a partir de uma operação secreta, criaram para si um ofício criminoso.
Como resultado, até 50% das mulheres adoecem por infecção e até 4% delas morrem.
O Governo Operário-Camponês levou em conta todo o mal (zlo) causado por esse fenômeno para o coletivo.
Nesse sentido, por meio do fortalecimento do sistema socialista e da campanha contra o aborto (agitatsii protiv abortov) entre as massas da população feminina de trabalhadoras, o Governo Operário-Camponês, na luta contra esse mal (boretsia s etim zlom), vem implementando amplamente os princípios da Proteção à Maternidade e à Infância, e prevê o desaparecimento progressivo (predvidit postepennoie ischeznovenie) desse fenômeno.
Todavia, enquanto os remanescentes morais do passado e as graves condições econômicas do presente ainda forçam parte das mulheres a decidir por realizar essa operação, objetivando proteger a saúde das mulheres dos interesses de predadores e de negociantes egoístas e ignorantes, e considerando que o método de repressão nesta área, absolutamente, não alcançou o seu objetivo, o Comissariado do Povo para a Saúde e o Comissariado do Povo para a Justiça decretam:
1. É admitida, de forma gratuita, a operação de interrupção artificial da gravidez nos ambientes hospitalares soviéticos, onde a sua execução será fornecida com a máxima garantia de que não causará danos.
2. É absolutamente proibida a execução desta operação por quem quer que seja, exceto por um médico.
3. A parteira ou a anciã responsável por executar essa operação perderá o seu direito de praticá-la e se submeterá ao Tribunal Popular.
4. O médico que, movido por interesses próprios e egoístas, executar a expulsão fetal em regime de prática privada, também será submetido ao Tribunal Popular.
Subscritores:
Comissariado do Povo para a Saúde – Nikolai Aleksandrovich Semashko
Comissariado do Povo para a Justiça – Dmitri Ivanovich Kurski
Publicado em 18 de novembro de 1920.
Tradução do original em russo feita por João Guilherme Alvares de Farias | Fonte: https://istmat.org/node/42778
Comentários por Wendy Goldman, em “Mulher, Estado e revolução”:
“Com esse decreto [que legalizava o aborto], a União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a dar a todas as mulheres a possibilidade legal e gratuita de interromper a gravidez. No entanto, apesar da enorme liberdade que o decreto concedia às mulheres, nunca reconheceu o aborto como um direito da mulher. O decreto afirmava claramente que o aborto era “um mal”, e que a legalização devia ser associada à “agitação contra o aborto entre as massas de mulheres trabalhadoras”. Semashko [Comissariado do Povo para a Saúde] sentiu a necessidade de salientar que o aborto não era uma questão de direito individual, já que tinha o potencial para diminuir a natalidade e ferir os interesses da sociedade e do Estado. Os oficiais dos Comissariados da Saúde e da Justiça acreditavam que, quando as mulheres tivessem acesso suficiente aos alimentos, habitação, cuidados com a criança e serviços médicos, elas não teriam mais a necessidade de abortar. O decreto, fortemente moldado pelas noções patriarcais da maternidade, mostrava pouca consciência dos limites que os filhos estabeleciam sobre a possibilidade das mulheres, mesmo sob as condições mais prósperas, de participarem da vida pública. A ideologia oficial recomendava clínicas de maternidade e creches como a principal solução do conflito entre o trabalho e a maternidade. (…)
Sob a lei soviética, o feto não era considerado uma pessoa com direitos. Uma mulher que abortasse em qualquer estágio de sua gravidez estaria isenta de processo. Em suma, a opinião prevalecente sobre o aborto se baseava em três princípios básicos fundamentais: em primeiro lugar, que a questão da pobreza levava as mulheres a procurar o aborto, e que uma melhora nas circunstâncias materiais eliminaria essa necessidade. Segundo, que a decisão de ter um filho não era pessoal, mas sim social; em terceiro lugar, que as necessidades reprodutivas da sociedade, em última análise, prevaleciam sobre os desejos individuais de uma mulher. As tendências libertárias tão evidentes nas discussões sobre casamento e divórcio nunca se estenderam para a questão da maternidade”.
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