Esse texto foi estimulado por debates realizados na Consulta Popular que, futuramente, se materializarão em uma revista. Visamos, com ela, contribuir na reorganização de um polo democrático-popular no Brasil. Pretendemos, com o apoio de companheiras e companheiros de outras organizações, resgatar as lições das revoluções democrático-populares, demonstrar que elas conformam um campo político e ideológico e demarcar as consequências das concepções e das práticas de campos que concorrem com ele no Brasil, à esquerda e à direita, como o chamado “socialismo já” e o nacional-desenvolvimentismo.
Herick Argôlo[i]
No interior da esquerda revolucionária, atualmente, é comum que a estratégia democrático-popular seja confundida com o caminho adotado pela maioria do PT ao longo dos seus governos. Há pouco tempo, um livro dedicado a propagar sistematicamente esse equívoco foi publicado por Mauro Iasi e seus discípulos[ii].
Segundo eles, o lulismo seria a “realização historicamente determinada da estratégia democrático-popular”. Embora apresentem críticas justas ao reformismo petista, os autores misturam-no no liquidificador com a orientação democrático-popular, para atribuir os dissabores de um à outra.
Ocorre que, como se verá, as grandes revoluções triunfantes do século XX, como a russa, chinesa, cubana e vietnamita, foram todas democrático-populares. Esse fato esteve longe de ser enfrentado por Iasi e companhia.
Com a queda da URSS, os movimentos e concepções democrático-populares foram empurrados ao ostracismo, através de ataques de direita e de esquerda. Resgatar as experiências e ideias que se provaram acertadas na luta proletária é fundamental para o êxito das revoluções que virão no século XXI.
O marxismo-leninismo e a estratégia democrático-popular
Sabe-se que as revoluções burguesas eclodiram para eliminar os entraves ao desenvolvimento do capitalismo. Mas cada uma à sua maneira. Como as classes se agruparam, como se enfrentaram e como alteraram seu comportamento foram fatores, dentre outros, que variaram de acordo com as circunstâncias econômicas e políticas de cada país e de cada momento.
Marx elencou que “na revolução inglesa de 1648, a burguesia estava ligada à nobreza moderna contra a realeza, contra a nobreza feudal e contra a Igreja dominante. Na revolução francesa de 1789, a burguesia estava ligada ao povo contra a realeza, a nobreza e a Igreja dominante”[iii]. Já na revolução alemã de 1848, inicialmente, a grande burguesia se apoiou no proletariado e nos camponeses. Logo depois, temerosa do avanço popular, brecou a si mesma e a revolução, numa aliança com a nobreza prussiana e a burocracia[iv].
Foi com a revolução russa, em 1905 e 1917, que houve uma profunda mudança de qualidade na luta contra os regimes arcaicos e feudais. Ao contrário de todas as revoluções anteriores, pela primeira vez na história as classes proletárias e camponesas se mostravam capazes de, com as suas próprias mãos, dirigir as transformações democrático-burguesas, ampliando-as ao máximo.
Embora na revolução alemã de 1848 o proletariado já houvesse se desenvolvido enquanto classe autônoma, com seus interesses específicos, havia uma “diferença essencial” em relação ao movimento revolucionário russo, como Lenin ressaltou em sua obra “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática”. “A enorme diferença que existe entre a social-democracia alemã de então [1848], e o atual Partido Operário Social-Democrata da Rússia”.
Nas palavras dele, “eram fracos os característicos proletários do movimento, suas correntes proletárias, na revolução democrática alemã (devido ao atraso da Alemanha em 1848, tanto no sentido político como no econômico, e o seu fracionamento estatal)”. E arrematou, é “muito mais poderosa a corrente proletária na torrente democrática de nossa revolução”.
Esse salto no desenvolvimento proletário correspondia a um avanço entre a estratégia defendida por Lenin na revolução russa e aquela a que Marx e Engels tiveram de se restringir nas circunstâncias da Alemanha. Agora, os operários e camponeses, em aliança, poderiam lutar pela constituição do que Lenin chamou de “ditadura democrática do operariado e do campesinato”.
Isso não significa que o dirigente bolchevique estava deixando de reconhecer o conteúdo burguês da revolução russa. Mas que considerava que, dada a capacidade de luta operária e camponesa, seria possível, mesmo sem romper com os limites do capitalismo, “ampliar estes limites em proporções colossais”, satisfazendo necessidades imediatas e estratégicas do proletariado.
A finalidade dessa ditadura popular seria “instituir uma nova e radical distribuição da propriedade da terra em benefício dos camponeses, realizar uma democracia consequente e completa indo até a república, arrancar pela raiz todos os característicos asiáticos e servis, não só das condições de vida dos camponeses, como também das condições de vida nas fábricas; iniciar um melhoramento sério da situação dos operários e a elevação do seu nível de vida; e, finalmente, por último, mas não menos importante, alastrar o incêndio revolucionário na Europa”[v].
Os bolcheviques tiveram que travar um forte embate contra os mencheviques que, sustentando-se no esquematismo que faziam das revoluções do passado, não queriam enxergar a possibilidade da ditadura democrática do operariado e do campesinato. “Os neo-iskristas [mencheviques] aprenderam que a transformação democrática tem em sua base econômica a revolução burguesa, e ‘entenderam’ isto como a necessidade de rebaixar as tarefas democráticas do proletariado ao nível da moderação burguesa, ao limite além do qual ‘a burguesia lhe dá as suas costas’ (…) O marxismo não ensina o proletariado a ficar à margem da revolução burguesa, a não participar na mesma, a entregar a referida revolução à burguesia, e sim, ao contrário, ensina a participar do modo mais enérgico e mais decidido na luta por uma democracia proletária consequente para que a revolução seja levada até o final”[vi].
O desenrolar da revolução de 1917 deu razão a Lenin. Até mais do que ele previa[vii]. Os Sovietes de Deputados Operários e Soldados, que significavam a concretização da ditadura democrática do operariado e do campesinato, instituíram um governo capaz não só de alargar as transformações democrático-burguesas, como também de pavimentar a passagem ao socialismo na Rússia[viii].
Esse tipo de revolução, na qual o proletariado e as classes populares tomam o poder de Estado com um programa que ainda não rompe com o capitalismo, mas que remove entraves a ele, resolve os problemas imediatos da vida das massas e possibilita uma transição ao socialismo, é o que podemos chamar de democrático-popular. O primeiro a cunhar essa terminologia, na trilha de Lenin, foi Mao Tsé-Tung, acompanhado pelos revolucionários do Vietnã e de Cuba[ix].
Apontava Mao, “o objetivo da revolução chinesa, na fase atual, não é abolir o capitalismo em geral, mas sim derrubar a dominação do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo burocrático e fundar uma república de democracia nova das grandes massas populares, tendo o povo trabalhador como força principal (…) As forças que determinam o caráter de uma revolução são, por um lado, os seus inimigos principais, e, por outro, as principais forças revolucionárias. Presentemente, os nossos inimigos principais são o imperialismo, o feudalismo e o capitalismo burocrático, enquanto que as principais forças na nossa luta contra tais inimigos são todos os trabalhadores manuais e intelectuais, que representam 90 por cento da população do país. E isto dá à nossa revolução, na sua etapa atual, o caráter de uma revolução de democracia nova, uma revolução democrática popular (…)[x]”.
É claro que as sociedades russa, chinesa, vietnamita, cubana, etc. tinham características distintas, que resultaram em diferentes desenvolvimentos da luta revolucionária. Por exemplo, o proletariado já era razoavelmente forte no incipiente capitalismo russo, ao passo que era fraco na China semicolonial. Isso teve consequências estratégicas, como possibilitar no primeiro o sucesso de uma luta insurrecional urbana, enquanto que exigiu do segundo uma guerra prolongada a partir do campo.
Porém, havia também características importantes em comum entre esses países. Em todos eles, 1) era a aliança entre o proletariado e os camponeses que poderia dirigir a revolução até o fim; 2) com um programa que destruiria os obstáculos ao capitalismo (sejam eles semifeudais, coloniais ou imperialistas) e colocaria a democracia a serviço das classes populares.
A estratégia democrático-popular se constituiu como um dos grandes legados do marxismo-leninismo. Hoje, em especial, para os países dominados pelo imperialismo.
Reforma, revolução e contrarrevolução nos países dependentes
Algumas das premissas da estratégia democrático-popular apresentadas no livro capitaneado por Mauro Iasi não deixam de estar corretas. “A suposição da imaturidade de determinada formação econômico-social (em nosso caso, a brasileira) para o engajamento aberto e imediato em uma transformação socialista; (…) o compromisso com o fortalecimento dos componentes democrático-burgueses da sociedade em que se atua, supostamente para que se amadureçam as condições, objetivas e subjetivas, para uma futura possibilidade de superação do capitalismo”[xi].
Contudo, para Iasi e os demais, o resultado “verificado historicamente” dessas premissas e dessa estratégia seria “se aproximar do compromisso com a ordem social burguesa” e remeter o acirramento dos conflitos e a ruptura para “um futuro indeterminado e indeterminável”. Afirma ele, “verifica-se historicamente que a defesa desse núcleo duro pôde se aproximar do compromisso com a ordem social burguesa tout court, ou melhor, com uma sua versão tida como mais macia, palatável, humana”.
Tomemos o exemplo do processo revolucionário cubano para fazermos, nós mesmos, uma “verificação histórica”. Quais foram as primeiras tarefas da revolução cubana? A diminuição em 50% do valor dos aluguéis; diminuição das tarifas elétricas; melhorias na educação e saúde públicas; substituição do exército e da polícia de Batista pelo Exército Rebelde; proclamação da Lei de Reforma Agrária; nacionalização de empresas estadunidenses e de bancos nacionais e estrangeiros, etc.
Tratava-se do Programa do Moncada, propagandeado por Fidel Castro em sua autodefesa, “A História me Absolverá”. Todas essas medidas tinham um “compromisso com o fortalecimento dos componentes democrático-burgueses da sociedade em que se atua”[xii]. Elas não rompiam com o capitalismo, não tinham um caráter socialista, mas sim democrático-popular.
Mas por que Fidel e os demais revolucionários do Movimento 26 de Julho não defenderam um programa imediatamente socialista? Justamente porque o grau de desenvolvimento econômico de Cuba e a capacidade de luta do proletariado tornavam isso impossível. Em outras palavras, por conta da “imaturidade de determinada formação econômico-social”, nesse caso, a cubana.
O próprio Fidel explicou, “nosso programa de luta contra Batista não era um programa socialista, nem podia realmente ser um programa socialista. Porque os objetivos imediatos de nossa luta não eram ainda, nem podiam ser, objetivos socialistas. Teriam superado o nível de consciência política da sociedade cubana naquela fase; teriam superado o nível das possibilidades do nosso povo naquela fase”[xiii].
Ora, a defesa de um programa democrático-popular não empurrou os guerrilheiros da Sierra Maestra para um “compromisso com a ordem social burguesa”, muito menos remeteu a revolução cubana para “um futuro indeterminado e indeterminável”, como sustentou Mauro Iasi e seus correligionários. A conquista das massas para a defesa de um programa democrático-popular resultou exatamente no contrário em Cuba e em outros países coloniais, semicoloniais e dependentes. Resultou no acirramento da luta de classes e em rupturas revolucionárias, que proporcionavam progressos materiais e culturais para os trabalhadores e possibilitavam uma transição ao socialismo.
Nas palavras do revolucionário cubano Manoel Piñero, as revoluções de libertação nacional e social da América Latina e do Caribe, “em seu curso dialético, numa primeira etapa assumem tarefas de conteúdo democrático, popular e antiimperialista e tendem, em seu desenvolvimento – como parte indissolúvel de seu próprio processo e de acordo com seu caráter histórico geral-, a realizar tarefas puramente socialistas”[xiv].
O que acontece é que, nos países dominados, as reformas democrático-populares são intoleráveis para o imperialismo, que se nutre do seu sistema de espoliação. Essas reformas têm o potencial de dinamizar o antagonismo de classes, empurram o movimento de massas para uma ruptura e o imperialismo e seus lacaios para a contrarrevolução, no sentido inverso do que é declarado por Iasi.
Vamos a mais outra “verificação histórica”, essa mais familiar para nós. É inquestionável que os governos Getúlio Vargas, João Goulart e Dilma Rousseff não tinham qualquer inclinação revolucionária. Porém, eles foram alvos de golpes apoiados pelo imperialismo. Por quê?
Os dois primeiros porque, ainda que de forma moderada, sustentaram reformas democrático-populares. Por sua vez, o governo do PT promoveu reformas modestíssimas, com vários recuos e concessões, sem fugir do mesmo destino.
Esses governos, mesmo sem qualquer intento de promover uma ruptura, se defrontaram com a intransigência imperialista. Em todos esses casos, os conflitos não foram remetidos para “um futuro indeterminado e indeterminável”, mas foram antecipados e acelerados. As tarefas nacionais, democráticas e populares são tão essenciais nos países dependentes, e têm um potencial tão grande de mobilizar as massas, que os revolucionários devem tomá-las em suas mãos.
Os processos de acirramento da luta de classes no Brasil nunca foram dirigidos em torno da conquista do poder de Estado com as massas. Entretanto, Mauro Iasi vem atribuindo aos recentes governos do PT, de um modo confuso e que causa estranheza, as concepções da estratégia democrático-popular. Examinemos como e por quê.
O PT e a estratégia democrático-popular
Para Mauro Iasi, “o ciclo histórico em que nos encontramos caracteriza-se pela predominância da Estratégia Democrática Popular. Tal formulação encontra no Partido dos Trabalhadores (PT) sua forma de expressão organizativa e política e seu desenvolvimento corresponde ao percurso histórico deste partido desde sua formação em 1980 até a experiência de governo que completa em 2013 dez anos”[xv].
Ou seja, de acordo com Iasi, não teria havido uma ruptura, uma mudança de qualidade, entre o que foi o PT na década de 1980 e aquele que chegou ao governo Lula em 2003. E, assim, a predominância do PT significaria a hegemonia da estratégia democrático-popular na esquerda. Bem… Talvez relembrar alguns episódios emblemáticos, ainda que brevemente, ajude a resgatar a verdade dos fatos.
Nas eleições de 1989, entre Lula e Collor, durante uma campanha na qual a burguesia se unificou contra o PT, o então presidente da FIESP chegou a declarar que mais de 800 mil empresários fugiriam do país se Lula ganhasse as eleições. Já nas eleições de 2002, o vice da chapa de Lula era o empresário José Alencar e o PT divulgou a chamada “Carta ao povo brasileiro”, um conjunto de compromissos para “acalmar” a grande burguesia financeira. Nas duas ocasiões, seria o mesmo PT?
Em seus escritos, Mauro Iasi não ignora totalmente essa diferença. Mas ele sugere que se trata de uma mera “consequência da efetivação” da estratégia democrático-popular. Segundo ele, os supostos “limites” dessa estratégia não poderiam levar a um resultado distinto, eles teriam determinado apenas “mudanças de forma”.
Diz ele, “resta saber se este desfecho implica na ruptura da estratégia ou é uma consequência de sua efetivação. Nos parece que a única maneira de assumir que o produto não corresponde à intenção política inicial é supor que as formas de implementação política poderiam levar a um resultado qualitativamente e essencialmente diverso. Evidente que a ação política imprime direções diversas e os resultados históricos não podem ser compreendidos num quadro de desdobramentos inflexíveis e unidirecionais, no entanto, se estamos correto em nossa análise, os fatores essenciais apontados determinariam um pano de fundo no qual as mudanças de forma, ainda que importantes e com resultados políticos muito diversos, não teriam o poder de alterar os limites da formulação estratégica”[xvi].
Vê-se que se trata de um mero jogo de palavras, que não enfrenta a questão realmente essencial em uma estratégia democrático-popular. A questão da tomada revolucionária do poder de Estado, que fora abandonada pelo PT.
Em 1987, o 5º Encontro Nacional do PT aprovou uma resolução política que defendia expressamente uma estratégia democrático-popular. O PT, com um programa antimonopolista, anti-imperialista e antilatifundiário, elegeria um governo com o fim de desencadear um processo revolucionário. Expressava a resolução, “nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares […] é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária”. Seriam essas as pretensões do governo Lula eleito em 2002? É evidente que não.
Tampouco o PT era, na década de 80, um todo homogêneo que se guiava pelas resoluções do 5º Encontro. Existia uma polarização entre uma militância revolucionária e outra que se limitava à defesa de algumas reformas sociais. Essa polarização, porém, perdeu mais tarde a sua força. O que os governos Lula e Dilma assumiram foi um programa neodesenvolvimentista que respondia primordialmente aos interesses de frações da burguesia, e apenas secundariamente aos interesses das classes populares.
Nesses governos, os grandes monopólios nacionais foram fortalecidos, o anti-imperialismo foi substituído por uma resistência bastante pontual e limitada ao domínio imperialista e a reforma agrária cedeu lugar a um tímido apoio à pequena produção camponesa. No que é mais elementar, as políticas dos governos do PT que promoveram melhorias na vida do povo vieram totalmente apartadas de qualquer esforço no sentido da organização popular para a conquista do poder.
Estamos com Valter Pomar quando diz que “a estratégia predominante no PT, desde 1995 e principalmente a partir de 2002, deixou de ser a estratégia democrático-popular articulada ao socialismo aprovada no quinto encontro nacional do PT”[xvii].
Mas por que Mauro Iasi tentou contornar esse fato, que salta aos olhos? Por que misturou as concepções reformistas que tem guiado a maioria do PT e a estratégia democrático-popular?
Esse parece ter sido um subterfúgio encontrado para atacar a estratégia democrático-popular de maneira fácil, através das insuficiências dos governos do PT, induzindo a falsa associação de uma às outras. A verdade é que contestar a estratégia democrático-popular diante das lutas revolucionárias triunfantes seria uma tarefa difícil e duvidosa.
O “socialismo já” e o abandono da luta política
Em contraposição à estratégia democrático-popular, Mauro Iasi defende que “o caráter das transformações necessárias em nosso país é anticapitalista e, portanto, socialista”[xviii]. Ele qualifica como “etapismo” a identificação de etapas na estratégia democrático-popular[xix].
Aos que rejeitavam reconhecer etapas em uma revolução, Mao Tsé-Tung declarava, “somos partidários da teoria da transição da revolução e não da tese trotskista da ‘revolução permanente’. Somos pela realização do socialismo através de todas as etapas necessárias da república democrática. Somos contra o seguidismo, e também contra o espírito de aventura”[xx].
Não é o desejo dos revolucionários que determina as tarefas econômicas e sociais de uma revolução, mas as contradições efetivamente existentes. Em um país como o Brasil, com um desenvolvimento econômico sufocado pelo imperialismo e um proletariado pouco desenvolvido, proclamar medidas socialistas, rejeitando-se as tarefas políticas democrático-populares como mero “reformismo”, só tem resultado em equívocos como o culto aos movimentos reivindicativos e outras formas de negação da ação política.
Os que cultuam os movimentos reivindicativos creem que as greves e outras formas de luta reivindicativa por direitos podem, através de uma grande manifestação ou de uma greve geral redentora, elevar os trabalhadores ao céu do socialismo. Esse culto espontaneísta termina funcionando como uma falsa compensação ao abstencionismo diante das lutas políticas não socialistas.
A negação da ação política pode ainda se manifestar sob variadas formas, como o catastrofismo (a ideia de que o capitalismo vai cair de podre); a política tratada como reflexo mecânico do econômico (a insinuação de que não precisamos fazer nada, o capitalismo seria uma toupeira que escavaria por nós); o capitalismo como resultado da “alienação humana” (bastariam bons pregadores para a humanidade “se esclarecer” e se emancipar), etc.
Todas essas concepções, no fundo, refletem inclinações próprias dos setores médios, que são críticos ao avanço do capitalismo, na medida em que os prejudica, mas pouco fazem para derruba-lo, na medida em que os beneficia. A defesa de um programa imediatamente socialista, o “socialismo já”, é um parente próximo do anarquismo.
Quando se aventuram a incidir na luta política, os defensores do “socialismo já” tropeçam na incontornável realidade. Um trecho das Revoluções Políticas da IV Assembleia Nacional da Consulta Popular sintetiza-o muito bem. “Os que criticam a atualidade de um programa nacional, democrático e popular para a revolução brasileira não apenas são incapazes de formular uma alternativa de programa com tarefas de caráter socialista que se coloque no plano imediato como, na prática, acabam aplicando em suas bases e campanhas eleitorais justamente o que tanto criticam: um programa de caráter nacional, democrático e popular, repleto de termos como ‘estatização’, ‘reajuste’, ‘participação’, ‘reforma’, ‘democratização’ e ‘direitos’. Trata-se, portanto, de uma crítica cínica e sem conteúdo”.
As atuais circunstâncias econômicas, políticas e sociais de um país dependente como o Brasil impossibilitam a defesa de uma revolução imediatamente socialista. Reconhecer uma etapa democrático-popular não agrada a verborragia revolucionária, mas é o que realmente permite conquistar uma democracia popular, a soberania nacional e a elevação das condições de vida das massas a outro patamar, avançando rumo ao socialismo.
A revolução democrático-popular no Brasil
O imperialismo e a dependência constituem a contradição fundamental do Brasil. É essa contradição que o programa estratégico democrático-popular é chamado a resolver.
Como identificou Carlos Marighella, “no Brasil — como já vimos — trata-se de resolver a crise crônica de estrutura. E esta hoje consiste num fato novo: seu conteúdo e sua evolução são engendrados pelo crescimento do capitalismo nas condições de dependência do imperialismo e da manutenção do latifúndio. É o crescimento do capitalismo — em tais circunstâncias — que vem determinando todo o processo político brasileiro”[xxi].
Confrontar o imperialismo no Brasil passa por diversas tarefas que uma ditadura democrático-popular deve realizar. Monopólio estatal das finanças, do comércio exterior, dos recursos naturais, das comunicações, da energia e serviços fundamentais; confisco e distribuição das propriedades latifundiárias; controle popular das armas e da administração pública; implementação de um plano robusto de industrialização; retirada do Brasil da condição de satélite da política exterior estadunidense; expansão e desenvolvimento da ciência e da técnica; reforma de todo o sistema de educação; garantia de qualidade no atendimento à saúde; progressiva socialização do trabalho reprodutivo; melhoria geral dos indicadores sociais, com promoção do emprego, universalização das moradias, etc.
Um programa desse tipo não pode ser cumprido pela burguesia brasileira. Mas é capaz de mobilizar as classes populares para a conquista revolucionária do poder.
Iasi ignora, ainda, que a dependência externa debilita o proletariado não só para a luta contra a burguesia, como também para promover um rápido desenvolvimento econômico e político após a tomada do poder de Estado. Essa é uma condição indispensável para a efetiva melhora das condições de vida das massas urbana e camponesa, que é o que pode fortalecer, diante da contrarrevolução, a posição do proletariado, único capaz de defender as conquistas populares e avançar decisivamente ao socialismo.
Schafik Handal, grande dirigente revolucionário de El Salvador, resumiu bem a relação entre um programa democrático-popular e a luta pelo socialismo. Diz ele que, na revolução na América Latina, “não se pode atingir o socialismo senão pela via da revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar a revolução democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo. De maneira que entre ambas há uma ligação essencial indissolúvel, são facetas de uma única revolução e não duas revoluções. Se olhamos de agora para o futuro, o que se apresenta é a revolução democrática anti-imperialista e que não se apresenta com uma revolução à parte, senão como a realização das tarefas próprias da primeira fase da revolução socialista”[xxii].
É certo que as revoluções vindouras revelarão muitas diferenças em relação às do passado. Eric Hobsbawm chamou bem a atenção, por exemplo, que o final do século XX “assinalou o fim dos sete ou oito milênios de história humana iniciados com a revolução da agricultura na Idade da Pedra, (…) encerrou a longa era em que a maioria esmagadora da raça humana vivia plantando alimentos e pastoreando rebanhos”[xxiii].
Por um lado, a massa camponesa que existia no nosso país 60 anos atrás, com quem Marighella e muitos outros lutadores brasileiros contavam, acertadamente, formar um exército revolucionário, reduziu-se drasticamente. Por outro lado, as massas urbanas, mesmo não assalariadas, tendem a jogar um papel relevante nos processos revolucionários vindouros, com já mostraram, de forma embrionária, os que desceram os morros em defesa de Hugo Chávez na tentativa de golpe na Venezuela em 2002.
Não obstante as novas formas que a vida apresentará, as orientações gerais da estratégia democrático-popular seguirão válidas. É com elas que a vanguarda do proletariado brasileiro iluminará seus caminhos para a vitória no século XXI.
[i] Agradeço aos companheiros que participaram dos debates e, em especial, a André, Armando, Danilo, Thiago, Leitinho, Durval, Du e Jones, que leram previamente e enviaram críticas e sugestões, sem que, é claro, possa-se atribuir a eles quaisquer falhas e insuficiências do texto.
[ii] “A estratégia democrático-popular: um inventário crítico”. Organizado por Mauro Iasi, Isabel Mansur Figueiredo e Victor Neves. Na apresentação do livro, é informado que ele parte das análises de quatro textos anteriores de Mauro Iasi.
[iii] Karl Marx em “A Burguesia e a Contra-Revolução”.
[iv] Lenin em “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática”.
[v] Lenin em “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática”.
[vi] Idem.
[vii] “Devemos saber completar e corrigir velhas ‘fórmulas’, as do bolchevismo, por exemplo, que em geral são acertadas como já foi demonstrado, mas cuja realização concreta resultou em ser diferente. Antes, ninguém pensava, nem poderia pensar, na dualidade de poderes”, Lenin em “A Dualidade de Poderes”, abril de 1917.
[viii] “(…) a revolução russa de fevereiro de 1917, além de varrer do mapa toda a monarquia czarista e de entregar todo o poder para a burguesia, se aproximou bastante da ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses. O Soviete de Petrogrado e os Sovietes locais de Deputados Operários e Soldados são essa ditadura (isto é, um poder que não se baseia na lei, mas da força direta das massas da população armada), a ditadura das classes mencionadas”. Lenin em “As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução”, abril de 1917.
[ix] Em “Duas Táticas…”, Lenin já falava do “caráter popular” da revolução democrática que estava para ocorrer na Rússia. Uma revolução que satisfazia “as necessidades e exigências do povo em geral”, a “unidade de vontade nas questões da democracia e na luta pela república”.
Mao cunha o termo “revolução democrática popular”, que usou em textos como “A Orientação do Movimento de Juventude” (1939) e “Sobre a Questão da Burguesia Nacional e dos Nobres Esclarecidos” (1948), dentre outros. Mais tarde, em 1954, a primeira Constituição da República Popular da China consagrou que essa República constituía um “Estado de democracia-popular”.
[x] Mao Tsé-Tung em “Sobre a Questão da Burguesia Nacional e dos Nobres Esclarecidos”. O destaque é nosso.
[xi] “A estratégia democrático-popular: um inventário crítico”. Organizado por Mauro Iasi, Isabel Mansur Figueiredo e Victor Neves.
[xii] “A estratégia democrático-popular: um inventário crítico”. Organizado por Mauro Iasi, Isabel Mansur Figueiredo e Victor Neves.
[xiii] Fidel Castro em “Cuba-Chile”, 1971.
[xiv] “A crise atual do imperialismo e os processos revolucionários na América Latina e no Caribe”,Manoel Piñero.
[xv] Mauro Iasi em “O PT e a Revolução Burguesa no Brasil”.
[xvi] Idem.
[xvii] Entrevista para Isabel Mansur, publicada em “Revolução brasileira”.
[xviii] Em “A estratégia democrático-popular: um inventário crítico”.
[xix] Ver a “Carta do camarada Mauro Iasi a toda militância do PCB e dos coletivos partidários”.
[xx] Mao Tsé-Tung em “Lutemos por incorporar as massas por milhões na Frente Única Nacional Anti-Japonesa”.
[xxi] Carlos Marighella em “A Crise Brasileira”.
[xxii] Schafik Handal em “O Poder, o Caráter, a Via da Revolução e a Unidade da Esquerda”.
[xxiii] Em “A Era dos Extremos”.
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